por Paulo Silvestre
Um dos grandes problemas do movimento liberal em Portugal (não tanto no Mundo) é o facto de congregar pessoas de sensibilidades políticas muitíssimo díspares, até antagónicas. Não é um problema inultrapassável, mas é uma questão fulcral, que carece absolutamente de ser atendida, mas raramente o é.
E por não ser posta à evidência, discutida entre irmãos, é uma questão que vai ulcerando longe da vista, com consequências imprevisíveis.
Trata-se daquilo que em Direito se designa por “dissenso oculto”: duas pessoas acreditam, de boa fé, que estão de acordo quanto a uma realidade — que estão a falar da, a pensar na, e a desejar a mesma realidade (o liberalismo, a Liberdade, o primado do Indivíduo, a libertação do socialismo) —, quando na verdade estão em desacordo profundo quanto a pontos essenciais concernentes a essa realidade.
Exemplo: A Ana, que é uma liberal conservadora, afirma «Eu sou liberal!», e o Bento, que é um liberal progressista, responde «Eu também!», e os dois anunciam em uníssono «Somos ambos liberais!».
Todavia, a Ana e o Bento encaram o “ser liberal” de maneiras muito diferentes, sem sequer o saberem.
A Ana acredita que a liberdade de expressão, por desagradável que seja, é “conditio sine qua non” para a aquisição da Verdade, sente que a liberdade política reside no estado nação, sabe que certos “valores culturais” estão na base da Liberdade, e é cautelosa relativamente à mudança.
O Bento acredita que o “discurso do ódio” deve trunfar a liberdade de expressão, anseia por um mundo global que inclua ditaduras (para assim acabar com as ditaduras), encara os “valores culturais” com grande desconfiança, e abraça a mudança como fonte do progresso.
O problema reside aqui: a Ana e o Bento não se chegam a aperceber de que, apesar de haver muito que os une — o que é óptimo e construtivo —, há também muito que os separa — e que tem obrigatoriamente que ser conversado, com calma, com bom humor, com elevação, com generosidade, com compreensão recíproca.
A Ana e o Bento, ao firmarem o acordo entre si nos termos supracitados, sem terem a percepção das enormes diferenças existentes entre os seus alicerces políticos, e sem aceitarem (o que não implica concordarem) conscientemente, especificadamente, essas diferenças, ir-se-ão a prazo deparar, com total surpresa e perplexidade, com opiniões do outro que são radicalmente inconciliáveis com as suas.
E vão torcer o nariz, vão ficar de pé atrás relativamente ao verdadeiro carácter, às verdadeiras intenções do outro.
A perplexidade deriva da incompreensão, a incompreensão leva ao medo, o medo leva à defesa, a defesa leva ao ataque, o ataque leva à aversão, e a aversão leva ao ódio (assim na política como na vida amorosa).
Quem compreende o Outro poderá dele discordar (e ainda bem), quem não compreender o Outro vai eventualmente sentir antipatia (e ainda mal).
É a Natureza Humana. É um processo inescapável.
A incompreensão de um tem frequentemente origem no silêncio, na timidez do outro: a Ana e o Bento foram empurrando com a barriga conversas importantes, que nunca chegaram a ter, atendo-se antes ao que os unia, e desconsiderando sempre o que os separava. E entretanto é tarde demais.
É assim essencial, e por isso devemos ser a favor de todos dizerem ao que vêm e em que acreditam, a favor das diferenças de opinião, a favor da discussão (muito) acesa e (muito) civilizada, a favor de cada um defender com unhas e dentes o seu ponto de vista.
Inversamente, é pernicioso e contraproducente assumir que o outro é estúpido, ou ignorante, ou má pessoa, ou doente da cabeça por ter uma opinião diferente.
É consabidamente difícil, senão impossível, mudar verdadeiramente, por via do discurso, a opinião do Outro, e isto vale principalmente para a opinião política, baseada em juízos morais que precedem o pensamento racional — v., por todos, “The Righteous Mind”, de Jonathan Haidt.
Que fique claro: Este texto não é uma defesa da unicidade de pensamento, muito pelo contrário — essa é a coutada de “outros” sectores políticos.
Este texto é, sim, uma defesa do discurso político aberto, aceso, contundente, sem medo. Quem tem medo fica em casa. Um liberal com medo não é um liberal, é uma ferramenta do mesmíssimo sistema que almeja reformar. Um liberal calado ou inseguro na sua fala não defende a Liberdade, defende o “status quo”.
Isto é um apelo ao verdadeiro pluralismo político entre os Liberais. À aceitação das diferenças políticas entre os Liberais. À tolerância política entre os Liberais.
É salutar o dissenso expresso.
Já o dissenso oculto, de que raramente se fala, é uma calamidade.
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