King era um génio do Amor. O Amor maiúsculo, o Amor absoluto, o Amor cristão. Na melhor tradução que me é possível fazer:
«Agora podemos ver o que Jesus significava quando disse “Ama os teus inimigos”. Deveríamos regozijarmo-nos por Ele não ter dito “Gosta dos teus inimigos”. É praticamente impossível gostar de certas pessoas. “Gostar” é uma palavra sentimental e afectuosa. Como poderemos sentir afecto por uma pessoa cujo propósito declarado é aniquilar o nosso ser e colocar inumeráveis percalços no nosso caminho? Como poderemos gostar de uma pessoa que ameaça as nossas crianças e coloca bombas nas nossas casas? Isso é impossível. Mas Jesus reconheceu que o amar é superior ao gostar. Quando Jesus nos exorta a amar os nossos inimigos, Ele não fala de “eros” ou “philia”, Ele fala de “ágape”, compreensiva, criativa, e redentora boa vontade para com todos os homens. Só seguindo este caminho e respondendo com este tipo de Amor seremos dignos de ser filhos de Nosso Pai que está no Céu.»
— MLK, do sermão “Loving your enemies”, 1957.
Estas palavras tocaram-me profundamente desde a primeira vez que as li.
Os inimigos a que King se referia eram o Partido Democrata do Sul dos EUA, absolutamente segregacionista, que, com a protecção e a participação activa das autoridades (governadores, mayors, polícias estaduais e municipais, juízes, procuradores), levava a cabo uma política de apartheid e de terror contra as comunidades negras descendentes dos escravos libertados por Lincoln, conduzindo atentados à bomba, ataques incendiários, linchamentos, espancamentos, abortos compulsivos, prisões e expropriações arbitrárias, e toda a espécie de horrores, ao abrigo da lei e à margem da mesma, usando como bode expiatório e desviando as atenções para uma certa sociedade secreta e seu braço armado, o Ku Klux Klan.
Que fique claro: Reverendo Doutor Martin Luther King, Jr. exortava os seus fiéis a amar o Klansman escondido debaixo da cogula. Let that sink in.
Contudo, King não esteve sozinho na luta pelos Direitos Civis, especialmente ao longo da longa década de 60. Naquilo que ficou para a posteridade como o mais acabado exemplo do “efeito do flanco radical”, a pacifista SCLC de MLK levou a melhor sobre outras forças político-ideológicas, de que se destacam a Nação do Islão, de Elijah Muhammad e Malcolm X, e os Black Panthers. Estas duas forças nunca aceitaram a filosofia de Martin, fundada no ideal de resistência pacífica, extraído da clássica vitória de Cristo e da recente vitória de Gandhi, e repudiavam-na veementemente, por actos, escritos, e palavras.
Os Black Panthers eram partidários de uma ideologia marxista revolucionária que, já à época, congregava radicais da Palestina ao Cambodja, de Berlim a Havana, pontuando em todas as universidades de topo do Primeiro Mundo. Já Malcolm X era um autoproclamado racista, um orgulhoso supremacista negro, um contraponto directo do Klan.
Felizmente, o establishment meteorologista, percebendo de onde o vento soprava, aclamou Martin, o arauto do Amor absoluto e da Paz positiva, como a figura de proa e o embaixador da unidade racial na América. Talvez o benchmarking haja sido feito pela bitola pacífica, inclusiva, respeitável, cidadã, de King mais por uma questão de fuga aos radicais sectários das outras organizações do que por uma questão deontológica. Ou talvez não, a doutrina diverge, e vai continuar a divergir.
Nas décadas que se seguiram, e até aos dias de hoje, o(s) movimento(s) pelos direitos dos negros nos EUA — especialmente após o assassinato de King em Memphis em 1968 — afastaram-se irremediavelmente da mensagem de unidade racial.
A filosofia pós-marxista e pós-modernista injectada em massa nas sociedades, com Foucault a traduzir as mais naturais pulsões e tradições humanas como jogos de poder, com Derrida a censurar a civilização ocidental como uma mera construção phalo-logo-cêntrica, com Pohl Pot e Yasser Arafat a serem consagrados como “freedom fighters”, com Marcuse a privar na UC San Diego com a diva dos Panthers Angela Davis, com Saul Alinsky a inspirar Hillary, com o recrutamento dos meninos ricos para a guerra do Vietname após a excussão prévia dos meninos pobres, com a revolta do Maio de 68 (que ditou a maior vitória da História para de Gaulle), com as manifestações pacíficas a degenerar em tumultos raciais impiedosamente reprimidos pelas polícias americanas, tudo isto contradisse e desonrou a filosofia e as palavras de King.
As suas palavras foram esquecidas, apagadas, censuradas. Diz-se, aliás, que já não servem.
A interseccionalidade de Crenshaw et al. é hoje uma religião. Não uma religião de paz, irmandade, comunhão, e Amor, mas uma religião de conflito social e racial, de sectarismo, de oposição, de ajuste de contas colectivo.
O movimento Black Lives Matter é assumidamente um movimento interseccional. Recordo-me de um documentário não tão recente acerca deste movimento em que uma activista e “community organizer” preparava e instruía outros activistas para uma acção de protesto a realizar no dia seguinte. Por trás de si, um quadro branco no qual se liam alguns tópicos relativos à desejável postura dos manifestantes e às suas relações com a polícia e a imprensa. Uma coisa me saltou à vista: uma cruz enorme a cortar a expressão “respectability politics”, ou “política de respeitabilidade”.
“Respectability politics” era a postura que MLK (avant la lettre) instilava no espírito dos seus irmãos de luta. Em todas as suas campanhas, marchas, presenças, discursos, sermões, interacções, Martin Luther King e os seus faziam questão de se apresentarem e portarem impecavelmente, de gravata ajustada, de cabeça coberta, de carteira na mão, de sapatos limpos; a linguagem cuidada, as maneiras gentis.
Compare-se um Martin, uma Rosa Parks, até um Malcolm, com um actual membro dos BLM. Nada têm em comum. E isso é deliberado.
O estilo, a imagem, e o discurso dos BLM são o oposto do de MLK, porque opostos são também os seus objectivos políticos e filosóficos. King queria uma América pós-racial, uma América em que a raça não importasse. BLM querem uma América onde a raça é (quase) tudo, uma América onde é ponto assente que Serena Williams ou Will Smith são mais oprimidos do que a Jane Doe ou o John Doe brancos que vivem debaixo da ponte.
A imagem que acompanha este texto faz apelo ao sermão que King proferiu em 1963 na escadaria do memorial a Lincoln, no culminar da Marcha Sobre Washington. A tradução possível:
«Eu tenho um sonho de que um dia esta nação fará jus e cumprirá o real significado do seu credo: “Nós temos estas verdades como auto-evidentes, que todos os homens são criados iguais”.
«Eu tenho um sonho de que um dia, nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos dos antigos donos de escravos serão capazes de se sentarem juntos à mesa da fraternidade.
«Eu tenho um sonho de que um dia até o estado do Mississippi, um estado abafado sob o calor da injustiça, abafado sob o calor da opressão, se irá transformar num oásis de liberdade e de justiça.
«Eu tenho um sonho de que os meus quatro pequenos filhos viverão um dia numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu carácter. Eu tenho um sonho hoje.
«Eu tenho um sonho de que um dia lá em baixo no Alabama, com os seus maldosos racistas, com o seu governador a pingar dos lábios as palavras “interposição” e “nulificação”, um dia lá no Alabama rapazinhos negros e rapariguinhas negras poderão andar de mãos dadas com rapazinhos brancos e rapariguinhas brancas, como irmãos e irmãs. Eu tenho um sonho hoje.
«Eu tenho um sonho de que um dia cada vale será elevado, e cada colina e montanha será rebaixada, e que os lugares ásperos serão alisados, e que os lugares tortos serão endireitados, e que a glória do Senhor será revelada, e que toda a Criação assistirá a isto em conjunto.»
Esta é uma mensagem de unidade, de fraternidade, de esperança. De amor, apesar de tudo. De amor sempre.
Esta mensagem é hoje letra morta. Já todos a esqueceram. Ai de nós.
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